Assim como todas as manhãs, eu acordei às 5. Uma xícara de café e algumas bolachinhas. Daquelas de água e sal. Uma delícia. Era o que tinha. Quando tinha aula de música depois da aula, ainda conseguia um copo de leite batido com ovo. Para dar sustento. Afinal, chegava quase 3 da tarde em casa. A perua demorava muito, às vezes.
Alguns olhares do meu tio me desafiavam a perguntar o que estava acontecendo. Ódio talvez. Não fiz nada. No máximo cantei duas músicas de ninar para a Sofia, a boneca que mamãe me deu. Mas, seria possível?
Enfim, fui para a porteira e fiquei esperando o “tio” Camilo (sim, o motorista da perua) passar para me pegar, e posteriormente as outras crianças da vizinhança.
Lá tinha pouco gado. Nessa hora ele estava confinado.As galinhas ainda dormiam. E o Mingau, o gato da tia Madalena debaixo do banco de madeira. Dormindo, para variar. Mas ouvi passos, lentos. A grama sendo amassada e soltando alguns sussurros. Não me contive, olhei para trás. Lá estava ele, o João. O tio João. Desde os quatro anos eu lidava com aquela cena. Frequentemente.
Meu coração me impulsionava para correr. Mas minhas pernas temiam e tremiam. Não podia. Prontifiquei-me à sua frente: “O que foi, tio? Esqueci algo?”
E mais uma vez ele me deu aquele abraço, o qual ele sempre me dava quando a tia Madalena ainda dormia.
Penso que ele estava querendo me dizer algo, mas o furioso motor da perua do tio Camilo gritou antes.
A estrada nos guiava e dentro de 1 hora de 20 minutos eu já estava na escola. Tia Jacinta sempre na porta para nos receber. Com aquele sorriso encantador e aquela voz. Ai, aquela voz!
Aquele pequeno sininho tocara. Infelizmente. Não, já não era mais o intervalo. Estava indo embora. A perua já esperava e as outras crianças também.
- O que foi Maria? – tia Jacinta me pegou no colo e me perguntou.
- Nada tia. Posso ficar aqui na escola hoje?
Silêncio. Aquele olhar triste da tia Jacinta. Ela sabia o que eu passava.
De volta para casa. Encontrar o tio João. Tão bravo. Tão grosso. Tão impaciente. Nojento, horrendo.
Meu quarto me chamava e a porta pedia para ser trancada.
Batida na porta. Nessa hora, minhas pernas imploravam para não se mexer. Meu coração chorava. Gritava.
Ao mesmo tempo em que abri a porta, já me via jogada na cama. Parecia um furacão. Sempre me batia. Parecia um ritual. Enquanto me batia seu suspiro profundo no meu ouvido me enojava. Parecia que gostava daquilo. De ver meu sofrimento. Engraçado que ele fazia “silêncio” com o dedo. Quando eu ousava soltar um resmungo, ele tapava minha boca.Não sei como era ao certo. Eu sei que ele sempre fazia isso. E nisso, tia Madalena na vizinha levando suas quitandas. Ela sempre me apunhalava pelas costas quando saía. Ele sempre tendo prazer quando ela saía. Óh, benditas quitandas!
Quando ele se cansava vestia a calça. Amarrava o cinto, o qual já nem tinha fivela. E saía.
Deixava-me ali, apenas 9 anos de idade prostrado na cama. Lembrando que 4 de felicidade, com meus pais, e esses últimos 5 assim. Com o corpo ardendo. Engraçado que eu nunca soube onde doía. Minhas pernas doendo. Acho que era o ângulo o qual ele, o tio João, as forçavam. E meu coração?
Continuava gritando. Mas rouco. E sangrando.
Eu só queria que ele me amasse como prometeu ao meu pai antes de falecer.
Eu só queria que ele pensasse.
Eu só imploraria para que ele parasse.
(ana lívia)
Sem palavras para descrever o que o texto conseguiu passar.
ResponderExcluirLembra de quando falei no meu post sobre o filme "Les 7 Jours Du Talion"?
Pois é. Bem semelhante a sensação,com a boa diferença que aqui pelo texto durar menos que um filme a sensação de nojo, raiva e tudo mais de podre dura menos, mas não deixa de ser menos intensa.
A parte boa? É que mais uma vez você se supera conseguindo passar da forma exata que tu quer, a moral que o texto impõe. A parte ruim é saber que isso embora seja apenas um texto, é também um retrato da triste realidade que temos convivido.
Sem mais, meus parabéns rs
Beijão
nossa ana...que soco no estomago..poucos textos nos causam sensaçoes tao reais.
ResponderExcluirbem ironico o título e o conteúdo...simples e doces quitandas; a vida e a realidade.
muito bem escrito :]
bjs
Ótimo texto! Adorei!
ResponderExcluirMuito triste, mas é uma realidade. Quantas meninas não passam ou passaram por isso? É doentio, é nojento, dá uma raiva, uma angústia!
Seu texto passou muito bem o sentimento que queria passar, fiquei apreensiva ao ler.
Parabéns! :)
Muito emocionante seu texto e muito bem escrito.
ResponderExcluirAdorei o blog!
Obrigada pelo comentário no meu.=)
Também estou seguindo.
Beijos
Eu simplesmente não sei explicar como me senti, acho que me senti como quando vc ve alguém que acaba de ser atropelado e vai morrer, porra Ana um dos textos mais lindos e pesados que já lí. Parabéns, muito te admiro. Isso deveria vir acompanhado de moonlight sonata de beethoven =P
ResponderExcluirbjO
Passei vários minutos olhando para o cursor dessa caixa de texto piscando... E embora agora tenha resolvido iniciar a escrita ainda não sei o que dizer! Ana Lívia... Que texto! Poucas vezes um texto foi capaz de me transmitir tanta verdade e clareza em tão poucas palavras.
ResponderExcluirOtimo blog! Parabéns! Já estou seguindo.
Alias, agradeço a visita que fizeste ao meu blog e também o comentário.
Diego Alencar :)
O jeito como você escreveu foi simples, claro, porém, o que ele trouxe ao leitor foi muito mais que clareza... foi raiva, ódio, nojo, assim como a pobre menina que sentia isso. Foi tipo uma jogada de mestre. Gostei mesmo da forma como foi escrita.
ResponderExcluirAlém de nos mostrar a realidade, mostrou a simplicidade e ingenuidade que se passa na cabeça de uma criança...
Mostrou o meu maior medo em relação ao mundo.
ótimo texto. Parabéns ;)
Meus pais tem eu e minha irmã!!
ResponderExcluirA minha irmã é filha biológica mesmo, eu sou filha de coração <33
E que bom que quer adotar uma criança, com certeza fará mais alguém feliz *-*'
A dica é fazer o que meus pais fizeram... desde pequena eles falaram que eu era adotada, mesmo que eu não entendesse muito bem, aí quando fui crescendo e entendendo isso, nem tive como surpresa, mas como uma parte de mim ;)
Adote sim se tiver condições *--*
Mto bom o texto!
ResponderExcluirO blog tá lindo!
Bastante reflexivo, acho que podemos nos dar bem, rs. Parabéns pelo blog, estou seguindo =)
ResponderExcluirNossa, que texto .
ResponderExcluirMuito profundo , sinceramente eu quase chorei .
Você escreve de um jeito tao simples mais que prendeu a minha atenção do começo ao fim.
Isso que você falou no texto , acontece tanto . Infelizmente .
É tao triste.
Parabéns viu.
Yorana B.
Meu quarto e chamava e a porta pedia para ser trancada!
ResponderExcluirPuxa como vc escreve bem, como coloca no meio de uma estória simples como um diário, umas frases tão legais... Parabens!
Obrigado pelo comentário tão carinhoso no meu blog!Vindo de uma pessoa que escreve assim vou até achar que estou aprendendo, hahahaha.
Ah e seu blog é muito bonito!
Atualizei o blog hoje, depois passa lá!
Triste.
ResponderExcluirEscreve super bem!
=)
amei,amei,amei!!!!
ResponderExcluirArrebentou com esse texto aí, muito bom! (:
ResponderExcluirÉ um soco na mente, meu coração também ficou apertado ao ler. Geralmente textos extensos eu não leio, mas esse me prendeu de verdade.
ResponderExcluirEssa história é sua, de alguém que você conhece ou é só uma história baseada na nossa nojenta realidade diária?
Lembra muito aquele filme 'preciosa'
Bjuss
www.suportedamente.blogspot.com
Exatamente isso! *-*
ResponderExcluirCola o selo na postagem e depois fala os 10 blogs.
Mas aí tem que colocar quem te entregou o selo e tals :D
Meu Deus, vc escreve bem demais Alice.
ResponderExcluiré incrível a quantidade de sentimentos q vc faz transbordar....
ÓTIMO TEXTO! Daqueles que tu lê e senti verdade! Parabéns!
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